Hoje em dia fico surpreso quando vejo alguém demonstrando algum interesse pelo universo. É praticamente uma anomalia no sistema. O universo é sempre tratado como algo estranho, esquisito, do qual, não se sabe bem porque, deve-se manter certa distância. Talvez para evitar também ser rotulado como alguém esquisito. É como se vivêssemos em outro lugar. Ou melhor, nós estamos na Terra e o universo está sabe-se lá onde. Deus está aqui, neste lugar, conosco. Nesse tal de universo só tem coisas estranhas, planetas, estrelas, galáxias, buracos negros, coisas essas as quais nada tem a ver conosco. Lá não tem ninguém ouvindo nossas preces, nos protegendo. Nada de interessante, afinal, ninguém pode nos ajudar.
Mas, de vez em quando, acontece. Alguém pergunta algo ou compartilha suas dúvidas e devaneios. Isso sim se tornou algo esquisito. Uma esquisitice mais que bem-vinda. Deixemos de ser normais por alguns minutos. Um alívio. A noção bizarra de que nós estamos num lugar e o universo está em outro, assim como a total falta de curiosidade sobre esse “outro” lugar, compõem uma normalidade da qual ainda preciso fugir ao menos de vez em quando, enquanto me restar um pouco de discernimento ou de autoconsciência.
Semana passada, ao compartilhar uma informação sobre o número de planetas extrassolares contabilizados até o momento pela equipe da Missão Kepler da NASA, fui pego de surpresa quando um ex-colega de trabalho, não só leu a notícia como ainda elaborou algumas perguntas sobre o tema. Faço questão de colocar aqui exatamente as palavras digitadas por ele, pois meus devaneios serão baseados nelas:
“Com essa filosofia, levanto apenas a seguinte questão: como podemos saber se somos os primeiros, uma raça entre milhares ou a última na cadeia evolutiva?”
Primeira pergunta: como podemos saber se somos os primeiros?
Essa pergunta leva a outra, que seria anterior:
Podemos saber se somos os primeiros?
É claro que não. Sinto muito, mas jamais saberemos tal coisa. Como foi muito bem, e exaustivamente, explicado pelo físico, professor e escritor Marcelo Gleiser em seu mais recente livro, A Ilha do Conhecimento – Os Limites da Ciência e A Busca Por Sentido, há limites, e não são poucos, para o que podemos saber.
Mas podemos saber nossa ordem de chegada aqui na Terra pelo menos: fomos os últimos a chegar. Isso mesmo. A última espécie a aparecer. A mais nova e mais imatura. Sim. Somos nós mesmos. Se, como fez o brilhante Carl Sagan em seu mítico e atemporal documentário Cosmos, nós associássemos toda a duração do universo com um calendário de 12 meses, nossa espécie teria surgido apenas nas últimas 2 horas desse ano cósmico.
Mas de onde viria essa necessidade de sabermos se somos os primeiros? Isso não é interessante? Por que precisamos correr atrás desse tipo de confirmação? Ela é natural ou imposta? Surge de uma dúvida genuína ou é imposta por algo bem maior do que nós?
Não passamos de recém-nascidos, biologicamente falando. Vivemos a maior parte dessa infância sob a plena certeza de que tudo, absolutamente tudo, girava em torno de nós. De nós como planeta, como espécime, como cultura e como indivíduos. Essa noção, esse modo de enxergar a nós mesmos e a todo o resto, é uma herança, cuja própria sociedade, em seus mais diversos aspectos, se encarrega de nos impor desde nossos primeiros passos.
Vemos a nós mesmos, nos definimos, como únicos e especiais, obra única de uma divindade também única e especial. Tudo que nos define tem que ser único e especial. É assim que desejamos nos ver. É assim que precisamos nos ver. É esse o único sentido que faz sentido pra nós. Somos únicos, especiais, imortais. Somos deuses experimentando todo o tipo de sofrimento possível para depois, por meritocracia, nos transformarmos em deuses eternos.
Com essa mentalidade impregnada desde o nascimento, é lógico que surge a vontade de sermos os primeiros a aparecer no universo. Ou seja, mesmo se houverem outros, nós continuamos sendo especiais, pois somos os primeiros. De qualquer forma, nos asseguramos da nossa condição de criaturas especiais.
Segunda pergunta: Seríamos os últimos na cadeia evolutiva?
Somos! Aqui na Terra pelo menos. Mas não os últimos na cadeia evolutiva (abordaremos “evolução” logo adiante) e sim a última espécie a surgir e evoluir até o homossapiens.
Mas e no universo? Seríamos os últimos? Haveria tortura pior para estes pequenos deuses aguardando pelo paraíso? O fato é que também não temos como saber, o que me remete automaticamente à pergunta: em que situação seria importante sabermos se fomos os primeiros ou os últimos a chegar neste cenário cósmico? A resposta é que não tenho resposta, ou melhor, não vejo como isso poderia agregar valor, fazer diferença ou ser simplesmente importante.
Mas a pergunta de meu colega faz mais sentido em sua forma completa, onde ele questiona se, evolutivamente, seríamos os últimos. Ou seja, se seríamos os mais atrasadinhos do universo.
Mais uma vez a resposta é curta: não temos como saber e nunca teremos. Mas o devaneio jamais será curto. Então quero fazer uma pequena observação sobre o conceito de evolução.
Durante a maioria do tempo em que gatinhamos por este planeta, também fomos massacrados por uma ideia onde evoluir é necessariamente avançar, ser melhor. Também fomos contaminados, espero que não irreversivelmente, pela ideia de que um macaco começou a evoluir, avançou e acabou transformando-se, literalmente como um mutante, em nós, ou seja, no homossapiens. Esses dois conceitos, distorcidos, se tornaram um problema sério. Um paradigma é rápido para ganhar forma, porém extremamente lento e difícil para ser mudado ou corrigido.
Evoluir não é, necessariamente, ser melhor. É ser mais apto. E adaptabilidade está inviolavelmente ligada ao ambiente. Quando o ambiente mudar – e ele vai -, quando as condições mudarem – e elas vão – quem não se adaptar irá perecer.
Outro aspecto necessariamente ligado à evolução é a mutação. Porém, este também terá valor dependendo do ambiente. As mutações – “erros” nas cópias dos genes no processo de reprodução – ocorrem aos milhares, ao longo de muito tempo, e serão selecionadas pelo ambiente apenas aquelas que favorecerem ou aumentarem as chances de continuar adiante, ou seja, de reprodução.
Se ocorrer um novo evento cataclísmico no planeta Terra – e vai -, já temos conhecimento de oito desses eventos, e voltarmos às condições primitivas, quase sem recursos naturais e sem tecnologia, caso quisermos continuar vivos e nos reproduzindo teremos necessariamente que evoluir. Não é estranho falar em evolução nessas condições? Parece contraditório, se pensarmos em evolução como melhoria. Mas se pensarmos em evolução como adaptação, passa a fazer muito sentido.
A humanidade não é a evolução do macaco, uma ideia difundida erroneamente, inclusive pelos livros de ciência. A humanidade pertence sim ao gênero dos primatas, dos grandes primatas, assim como gorilas, chimpanzés e orangotangos. Nós, os grandes primatas, assim como os demais primatas, símios, macacos, descendemos de um mesmo antepassado em comum, que, sem entrar em detalhes científicos, se assemelha muito mais a um pequeno roedor que sobe em árvores.
Conforme esse ancestral foi se espalhando pelos diferentes territórios, ambientes e ecossistemas, e foram se instalando, foram surgindo diferentes grupos em diferentes ambientes. Cada ambiente, com suas diferentes variáveis de ecossistema, foi selecionando diferentes mutações nesses grupos. Assim ocorreu até aquele pequeno roedor transformar-se no que somos hoje em dia, além da imensa variedade de primos que já descobrimos natureza a fora.
Com isso sabemos hoje em dia que a evolução não é necessariamente o que entendemos por melhoria, assim como, o que mais nos interessa agora, não é um processo linear. Aquela maldita imagem dos livros de história e de ciências, onde um chimpanzé vai ficando menos peludo e mais ereto até se transformar num homem, você pode esquecer definitivamente, assim como jamais mostrar tal absurdo pros seus filhos.
Perante o mecanismo evolutivo, dentro do que compreendemos até este momento, em não sendo um mecanismo linear, e levando em conta o número de espécimes diferentes que conhecemos, e tendo ideia da quantidade de ecossistemas que ainda não fomos capazes de observar, conhecer como a evolução chegou à configuração atual do planeta Terra se tornou uma tarefa praticamente incomensurável, um verdadeiro desafio faraônico. Ainda desconhecemos quase que a totalidade dos ecossistemas florestais e oceânicos do planeta e, ainda assim temos uma tarefa monstruosa pela frente para chegarmos a um nível de compreensão mínimo que nos permita chegar a um consenso sobre o que é de fato “Vida”.
Indo finalmente para a pergunta de meu colega sobre sermos ou não os últimos da cadeia evolutiva no universo, percebo que talvez ele esteja vinculando evolução com alguns valores de base da sociedade – tais como moral, ética, espiritualidade, tecnologia, economia, etc. Nesse aspecto, tendo em vista a enorme discrepância entre as culturas aqui na Terra, quem nós poderíamos eleger como referência para uma hipotética – e praticamente insana – comparação com outras hipotéticas culturas espalhadas pelo universo?
Aqui mesmo, apenas na Terra, temos um grande problema em relação a isso. Quem está na frente? Quem está abaixo? Quem está correto? Quem vive bem? Quem representa um modelo a ser seguido? Haveria uma única referência? Aqui voltamos ao mecanismo de evolução da própria natureza: é um processo linear? Não. Como medir a felicidade? Quais parâmetros usaríamos para medir o nível de evolução – como se tal nível existisse?
Repare, num contexto apenas terrestre, ou terráqueo, planetário apenas, como seria extremamente complexo definirmos algumas coisas. Existem questões que, levando-se em conta apenas nosso planeta, mesmo assim não fomos, somos ou talvez nem sejamos capazes de responde-las. Imagine tais questões aplicadas a um contexto universal.
O universo que observamos hoje tem 13,8 bilhões de anos de idade e cerca de 92 bilhões de anos-luz de extensão – que continua a crescer mais rapidamente que a velocidade da luz. Isso significa que, neste momento, se tivéssemos tecnologia para dar uma explorada ao menos superficialmente no universo, usando a velocidade da luz pra isso, demoraríamos mais de 90 bilhões de anos. São bilhões de galáxias. Milhares de trilhões de estrelas e um número maior ainda de planetas. Se vimos que algumas perguntas, aplicadas apenas ao contexto terrestre, se tornam verdadeiros desafios a serem vencidos, imagine – como se fosse possível imaginar uma coisa dessas – qualquer uma dessas perguntas aplicada num contexto universal. Não faz o menor sentido.
Já fez o exercício? Faça. Recomendo. Pegue algumas daquelas perguntas que atormentam sua alma e, levando em conta o pouco que sabemos sobre o universo até o momento, tente aplica-las a esse contexto universal. Veja como mais que rapidamente qualquer uma delas deixa de fazer qualquer sentido. Nós nem mesmo somos capazes de abstrair uma dimensão como a Terra ou o sistema solar. Imagine então se tivéssemos. Mas, mesmo assim, nossas perguntas se esvanecem frente ao oceano cósmico. Nesse momento temos a oportunidade de olhar para nós mesmos fazendo tais perguntas e constatarmos, como num espelho, o que move e motiva nossas perguntas: uma análise profunda e detalhada da realidade que queremos questionar? Ou apenas um impulso inconsciente gerado por paradigmas retrógrados e desnecessários?
Somos os primeiros? Somos os menos evoluídos? Somos apenas mais um entre muitos? Não sabemos. Jamais saberemos. Primeiros, últimos, evoluídos, não evoluídos. Extremos. Bem e mal. Certo e errado. Primeiro e último. Cartesianismo. Se nem mesmo a evolução é linear, cartesiana, olhemos para o universo. Tente imaginar como classificar evolução num cenário como esse. De qual nível de complexidade estamos falando? Inimaginável. Não sabemos. Jamais saberemos.
Só espero que sejamos uns poucos frente a “zilhões”, e que possamos descobrir, juntos, ao menos um pouco, a respeito do que se trata todo este negócio que resolvemos chamar de universo.